começar o ano nos “caminhos velhos” a pedir (pelas almas perdidas)

21 de janeiro de 2018. Um grupo de Charolas entra num dos cafés de Cachopo para “cantar ao Menino”. Cá fora aproveita-se o dia de sol no sítio costumeiro. Recuo mais de cinquenta anos nos “caminhos velhos”.

Maria de Lourdes conta como ia, em duas temporadas, por esses caminhos fora, cantar ao Menino e rezar pelas Almas. Ia com mais algumas mulheres e o “homem dos alforges” que carregava o que iam recebendo. Percorriam os caminhos entre vários montes — Mealha, Valeira, Corte João Marques — em tempos de invernia.

“Para ir apanhar alguma coisinha que nos davam.” Uma chouriça, um naco de carne ou pão era muito para quem não tinha terras ou quaisquer posses.

É preciso caminhar com as pessoas para ver o invisível, o que os caminhos não mostram: a violência, a pobreza e a desigualdade. A miséria de quem não tivesse um “abrigo” — casa, terras ou quem olhasse por si. Uma vida ainda mais violenta para as mulheres, especialmente para aquelas que tinham sido “enganadas” (mulheres solteiras com filhos) e que, não tendo família e trabalho, andavam de monte em monte à caridade.

Maria de Lourdes lembra-se vagamente de um dos primeiros versos de uma “Oração das Almas” – “Levanta-te se queres ouvir as Almas do outro Mundo”.

Imediatamente vem-me à memória, Michel Giacometti e as “orações das almas” do nordeste algarvio. Estas faziam parte do “ciclo dos doze dias” (do Natal até aos Reis). Eram cantos de peditório pelas almas do Purgatório.

Trauteio o canto com Maria de Lourdes. “Recordai, nobre senhor, nesse sono tão profundo”. Durante bastante tempo ouvi esta “Oração das Almas” num espetáculo no qual participava — “Sete Luas” do GEFAC – Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra.

Emociono-me e penso que deve ser um sinal qualquer para este início de ano e de trabalho.

Começo o ano nos “caminhos velhos” da serra a pedir pelas almas perdidas. A minha incluída.

> “Oração das Almas” (versão filmada), monte de Cabaços, concelho de Alcoutim, distrito de Faro 

“O ciclo dos Doze Dias: II. Cantos de Janeiras e Reis” Gravação: 1970, abril (1.ª campanha); 1970, maio-junho (2.ª campanha); transmissão: 1972, Janeiro.
“Michel Giacometti, filmografia completa”, DVD 3, Paulo Lima (coordenação), Tradisom. “O Povo que Canta”
também disponível em https://youtu.be/clZuwmGCGNo?t=3m29s

> “Oração das Almas”
recolhida em monte de Cabaços, Alcoutim, Faro, 1961
“Cancioneiro Popular Português”, Michel Giacometti com colaboração de Fernando Lopes-Graça, Círculo de Leitores, 1981, pp 95 e 311.

[versão com letra diferente]

Recordai, nobre senhor,
nesse sono tão profundo,
ouvirás vozes e clamores,
das almas do outro mundo.

Cristandade tão unida,
ouvindo gritos e ais,
lá tem Deus na outra vida
nossas mães e nossos pais.
Tenham dó e compaixão
daquela sentida voz.

De repente, para nós,
as almas em pena estão
dos nossos pais e avós,
’tão rogando a vossos pais,
toda a noite e todo o dia.

’Tão postos em agonia,
vendo que não lhe rezais
sequer um Ave-Maria.

Ó tão tristes pecadores,
ouvindo tristes gemidos,
das almas ‘tão em clamores,
dando gritos tão sentidos.

Gritam contra os seus herdeiros,
pelos bens que lhe deixaram,
sendo os seus tristementeiros,
seus testamentos não lhe acabaram.

Gritam contra os seus amigos,
que cá deixaram no mundo,
pois foi tal o seu descuido,
sendo vivos, mas não dizendo:
dá-me a mão, que eu vos ajudo.
Muito mal faz que “esperdiça”
das almas a “divação”.

Sendo das almas irmãos
vamos ouvir-lhe uma missa,
dou-lhe esta consolação.
Desta sorte lhe consolam
as almas dos nossos pais.

Uma missa que lhe ouvimos
e um pouco que lhe rezais
Fazes uma grande esmola,
porque vós nem meia dais.

* Ainda segundo Michel Giacometti e Fernando Lopes Graça, estes cantos participam do culto dos mortos. Estarão relacionados com as Encomendações das Almas, ainda que estas não incluam peditórios no seu cerimonial. >

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